Chuveirada

1.

— Laura, volta pra mim! Me perdoa.
— Nunca! Cachorro! Vai lá com a tal a Simoni.
— Foi só um banho, eu juro! Eu queria ficar cheirosinho pra você.
— Tá me chamando de porca, safado?
— Laura, não é nada disso! Dá um desconto, eu tava há duas semanas sem banho, na casa da Simoni tem poço artesiano…
— Então vai lá tomar banho com ela. Depois é eu que sou suja.
— Laura, volta pra mim! Não rolou nada, foi só um banho!

2.

— E aê, conseguiu serviço?
— Nada. E tu?
— Vixe… Quer dizer, serviço até aparece, mas como é que vai entregar? Dá nem pra fazer cimento.
— Foda… E nós faz o que agora? Volta pra terra?
— Lá num tem água também. Danô-se.
— Nós tinha que dar um jeito de ir pro Rio de Janeiro.
— Eu não! E os homi-lagarto?
— Pião, eu já disse que num existe homi-lagarto!
— Ô se existe! Eu vi no celular , ó aqui a foto! Tão fazeno homi-lagarto pra viver sem água.
— Deixa de besteira, Pião! É tudo invenção dessas internets.
— Invenção nada! Ó, pro Rio é que eu num vô nem a pau.

3.

— Pode entrar, tenente.
— Permissão para falar livremente, capitã?
— Sim, Marcela. Tudo certo para a operação?
— Tudo sim, capitã. Serão três carros leves, um blindado e metade da tropa.
— Ótimo…
— Capitã?
— Desculpe. Marcela, somos amigas há muito tempo. Puta que pariu, isso que estamos fazendo é imbecil. Estúpido!
— É… Todo um destacamento para proteger cinco caminhões pipa. Chega a ser ridículo.
— Ridículo é fazer tudo isso para que meia dúzia de filho da puta rico do Morumbi tenha água para limpar a bunda enquanto o povo todo morre de sede. Às vezes tenho vontade até…
— Melhor não dizer isso em voz alta.
— Não. Pelo menos nosso suprimento d’água não foi cortado. Desertar a operação seria se juntar à massa desesperada.
— Entre a cruz e a espada, capitã.
— Quantos perdemos na última entrega?
— Cinco. Felipe e Lúcia entre eles…
— Puta merda… Eu preciso ficar sozinha um pouco… Dispensada.

4.

— E a Laura e o Marcos?
— Morreram também. Acho que foi no tumulto.
— Pena. Simoni?
— Também.
— Mas a Simoni tinha poço.
— O povo tudo invadiu, e ela foi tentar defender a caixa d’água.
— Pena. O Rafael? Júlio?
— Rafael fiquei sabendo que fugiu pro norte. O Júlio foi naquele terceiro levante.
— O terceiro foi no Morumbi, né? Nas mansões?
— Esse mesmo. Saíram atirando sem dó.
— Pena. Quem sobrou?
— Nós duas, a Francisca… Acho que o Felipe tá vivo ainda, ele postou algo no Twitter outro dia.
— E o que a gente faz agora?
— Sobrevive, ué. Com tão pouca gente em São Paulo, pelo menos agora água é que não vai mais faltar.


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