Ir ao Encontro Irradiativo, um evento de dois dias com palestrantes negras, trans, gays, não-binárias e gente diversa, foi lindo. Mas também foi bastante incômodo. Não é todo dia que você é obrigado a ouvir, baixar a cabeça e sentir um pouquinho do mal que fazem o seus pares àquelas pessoas. E não importa se você não se identifica com as opiniões retrógradas dos seus pares, você tem acesso a todos os benefícios que essas identidades constroem.
Este não é um texto sobre o problema da falta de diversidade, de como representação importa, ou explicando por que há tantos nerds machistas e preconceituosos. O Manifesto Irradiativo já é lindo e cumpre o seu papel, e como outros já tratam do problema muito melhor que eu, deixei os links no final deste texto.
Também não posso falar sobre sofrer preconceito e exclusão, pois por mais problemas que eu tenha tido em minha vida, isso seria falso paralelismo. O protagonismo da luta deve ser de quem carregue a bandeira. Vou falar das únicas coisas para as quais me sinto gabaritado: privilégio e empatia.
Privilégio é transparente
Vou repetir, isso é importante: privilégio é transparente. Você não enxerga os benefícios que ele traz. Você não enxerga o olhar torto na fila do banco, a madame apertando a bolsa, porque tais olhares não fazem parte do seu mundo. Você não sente a porrada que sofre por ser quem é, por não concordar em abaixar a cabeça, porque ela não chega em você. É difícil validar a luta do Manifesto Irradiativo quando todos esses problemas não te atingem. Estão longe, lá na esfera do outro. A você, tudo isso é transparente.
Um das coisas mais poderosas que alguém, privilegiado como eu, pode fazer é investigar o próprio privilégio. Não é fácil, pois envolve desconstruir os blocos onde se apoia a sua própria identidade. Portanto, perdoem essa espiral ego-trip dos próximos parágrafos.
Tenho uma condição de vida confortável, e embora não tenha dinheiro para comprar tudo o que quero, nunca me faltou comida na mesa ou um teto. Saí de casa aos quinze anos para fazer colégio técnico em escola pública, ralei de estudar para passar no vestibular da Unesp, trabalhei de agência em agência, cheguei esgotado em casa muitas vezes, e continuo batalhando em busca de uma condição de vida um pouco melhor.
Essa é uma das minhas identidades construídas. Tudo isso é verdade. Mas ao mesmo tempo eu não posso esquecer que tive o privilégio de estudar em uma boa escola particular, tenho uma família bem estruturada que sempre incentivou os estudos, uma mãe leitora que me colocou no caminho das letras desde cedo e uma rede de segurança que me permite saltos mais ousados. Eu sempre tive (e ainda tenho) para onde voltar caso as coisas não dessem certo. Isso é privilégio.
Vamos investigar mais adiante. Meus pais trabalharam muito para que eu tivesse tudo isso, viveram o período da hiperinflação, chegaram a ter uma dívida no banco que equivalia quase à totalidade de seus bens. Se hoje eles pertencem a uma classe média-alta, é porque conquistaram esse direito com muito trabalho. Mas não podemos esquecer que ambos fizeram faculdade, tiveram acesso a uma boa educação pública, e sempre tiveram um pedaço de terra sobre o qual construir.
Ah, mas por sua vez, os seus pais… Bom, meu avô paterno chegou ao Brasil quase sem dinheiro, afetado por uma Europa devastada pela guerra, mas teve acesso a um pedaço de terra no Brasil oferecido pelo governo holandês.
Onde quero chegar: já é mais do que hora de desconstruir o mito do self-made-man, ninguém se ergue sozinho. Se não há a família, há sempre uma professora, um amigo. Há mérito em trabalhar duro, assim como há humildade em reconhecer todos que ajudaram você a estar onde está.
Peguei aqui apenas os aspectos socioeconômicos. Mas podemos ampliar esse espectro para qualquer esfera. Uma mulher só tem direitos básicos graças àquelas que lutaram tanto por isso no início do século.
Investigar o próprio privilégio é chato. É descobrir que você é o menino mimado que sempre teve tudo. Mas ao mesmo tempo, é isso que abre os horizontes. Ao analisar o que você tem, ao tornar o processo menos transparente, você se torna capaz de enxergar aqueles que não têm.
É muito importante dizer que isso não invalida a luta dos seus antepassados para que você esteja em sua posição. Muito pelo contrário, é um exercício de humildade e agradecimento, de perceber o quanto tantos outros fizeram para que você pudesse ser quem é. E se existe um meio de valorizar aqueles que vieram antes é carregando essa tocha adiante. Isso nos leva ao segundo ponto:
Empatia
Eu nunca vou saber o que é estar na pele do namorado da minha prima quando meu avô o impediu de entrar na piscina por ser negro. Eu não sei o que é entrar no ônibus e ter um ataque de pânico porque está cheio de homens. Eu não sei o que é apanhar no meio da Avenida Paulista por andar de mãos dadas com o meu namorado. Eu não sei. Mas eu posso imaginar. E só de imaginar dói.
Empatia é mais que necessário neste tempo de opiniões extremas. Por isso a primeira parte é tão importante, quanto mais você se desconstruir, mais será capaz de se colocar no lugar do outro, e poderá enxergar como essa luta é importante e básica. É uma luta para que possamos nos tornar mais humanos. Todos nós.
No Encontro Irradiativo vi gente com raiva, mágoa, rancor. Pessoas que não queriam ser assim, mas a quem enfrentar o mundo dia após dia torna a sua vida muito mais difícil. Mas ao mesmo tempo, pessoas brilhantes, que transformam tudo isso em amor, em luta, em obras de arte incríveis.
Apesar da divergência de opiniões quanto à forma, havia unanimidade em relação à importância da luta. Nos intervalos entre as palestras o clima era ótimo, sorrisos para todos os lados. Todos ali, sem exceção, tinham amor pelo que faziam. E naquele ambiente seguro podiam baixar a guarda e entregar-se plenamente a ser quem eram, pessoas únicas, representadas.
O que nós, privilegiados, podemos fazer a respeito
A primeira coisa é enxergar-se nessa condição. Eu preencho a cartela toda: homem, branco, cisgênero (tenho identificação com meu sexo biológico), hétero (sinto atração pelo gênero oposto). Mas quase todo mundo é privilegiado de alguma forma. Negro, mas de boa condição econômica. Mulher, mas branca. Nenhuma luta é mais importante que outra. Não é difícil enxergar onde você sofre preconceito, enxergar o privilégio talvez exija algum esforço.
A quem tem privilégio as portas estão sempre um pouco mais abertas. Então use o seu palco e redirecione os holofotes. Não se trata de pegar a bandeira e roubar o protagonismo, mas apoiar de todas as outras formas. Dar voz, compartilhar os pontos de vista, coletar o seu lixo e chamar a atenção do coleguinha que está fazendo piadas retrógradas.
E onde entra a cultura pop, o cinema, quadrinhos e a literatura em tudo isso?
Uma das “receitas de bolo” veio na última mesa: representatividade e inclusão.
Representatividade trata-se de aumentar a diversidade de personagens, fugir dos estereótipos e colocar gente gay, trans, negros, índios, gordos e de todo o tipo nas suas obras. Mas como?, perguntavam as pessoas brancas-hetero da plateia, eu incluso. Primeiro, trate-os com respeito, como seres humanos, abandone estereótipos e evite extremos. Seu personagem negro não precisa ser o bandido, mas também não precisa ser a Madre Teresa. É uma pessoa, com qualidades e defeitos. Seu personagem trans até pode sofrer um pouco de preconceito, mas não transforme isso no eixo do personagem a menos que você conheça a questão de perto e saiba muito bem o que está fazendo.
Um primeiro passo, para quem nunca trabalhou diversidade, é apenas colocar lá. Funciona assim: crie um personagem qualquer. Em algum momento da narrativa diga (ou melhor, mostre) que ele é gay, negro, trans, whatever. Continue a narrativa como se não tivesse nada de mais, não levante bandeiras por isso. Se essa não é a forma 100% perfeita, é melhor do que estereótipos e melhor que uma obra panfletária superficial. Representatividade é importante para que as pessoas que se identificam com aquele grupo possam se enxergar na cultura da qual fazem parte. Num dos exemplos mais clássicos, Whoopi Goldberg declarou que descobriu que uma mulher negra podia ser atriz ou fazer qualquer coisa na vida quando viu Uhura em Star Trek. E isso é mágico.
Mas representatividade deve ser apenas o primeiro passo. O segundo é inclusão. É termos mais produtores de conteúdo que contem suas próprias histórias. Abrir espaço para escritoras, editoras, cineastas, pessoas diversas dirigindo os holofotes.
Trasgo – Chamada por diversidade
Eu tenho um espaço. Chama-se Trasgo, e é a revista de contos de ficção científica e fantasia mais legal do mundo. É trimestral, com seis contos por edição. E embora publicamos mulheres em todas as edições e alguns contos de autores negros e diversos, é pouco.
O que queremos: mais diversidade. Mostrar todo o potencial da fantasia e da ficção científica em apresentar o diferente, em mostrar um novo mundo, em extrapolar preconceitos. Queremos contos escritos por pessoas trans, queremos contos escritos por autoras negras, queremos contos escritos por pessoas não-binárias.
Precisa ser um conto exclusivamente sobre o assunto? Não. Queremos todo tipo de conto. O que importa são os vários pontos de vista. Se você é uma pessoa trans e quer escrever sobre um dinossauro mothafucka quebrando tudo numa nave espacial, pode. Se você é uma mulher branca e quer escrever sobre alienígenas sofrendo racismo na sociedade humana, pode. Pode tudo!
A ficção científica e a fantasia sempre trataram de metáforas e extrapolações. Apresentam visões de mundo diferentes, exercitam a empatia. É assim que tem que ser, e é assim que a Trasgo vai caminhar cada vez mais.
Também é importante explicar que a Trasgo é um espaço seguro, porém aberto. O que significa? Que nada impede que uma autora seja atacada em outros lugares a partir de algo escrito na revista, mas isso não vai acontecer no próprio site, pois os comentários são moderados. Você também não precisa me dar um nome real ou social para publicar o conto, pseudônimos são aceitos. (A Trasgo paga as autoras, mas não se preocupe, arrumaremos um meio de fazer este pagamento). E a Trasgo tem uma comunidade de gente linda que lê e apoia a revista.
Por isso enviem os seus contos. Todos serão lidos com muito carinho. Respondemos a todas as submissões em até três meses. Para mandar material para a Trasgo, entre no site da revista.
Enfim
Espero que este texto não seja lido do modo errado. Ao analisar meu próprio privilégio, o objetivo é servir de exemplo, em busca de mais empatia por aqueles que não têm a mesma sorte que eu. É um exercício incômodo, mas muito, muito menos incômodo do que viver dentro de uma sociedade que não te aceita, não te representa e faz questão de mostrar isso em cada pequeno detalhe, até na “cor de pele” de um curativo.
Aproveitando o final do texto, algumas recomendações de leitura, só para começar a entender o tamanho do buraco.
Como foi o Encontro Irradiativo – Sem Serifa
O Efeito Scully – Momentum Saga
Valentina e os Porcos – Jim Anotsu
Das lutas de cada uma – Ana Cristina Rodrigues
[Atualização: na versão anterior deste artigo estava escrito Manifesto Irradiativo, onde deveria estar Encontro Irradiativo. O Manifesto surgiu no começo do ano, o encontro aconteceu no último fim de semana na Biblioteca Viriato Corrêa, em Sampa.]