E surgiu o humano

Este miniconto foi publicado no Zine404, Edição 3.
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Surgiu o humano. E o humano caçou mamute, caçou coelho e pintou a parede da caverna. Descobriu o fogo, brigou pelo fogo, queimou-se no fogo. Inventou a agricultura e parou de andar de caverna em caverna. Criou a oligarquia, criou a religião. Agora haviam humanos mais importantes que outros e quase sem querer a miséria ganhou um lar.

Coisa fascinante era esse humano. Fazia casa, fazia templo, fazia pirâmides imensas. Fazia barco, morava no barco, atravessava o oceano no barco. Num piscar de olhos era humano para tudo quanto é lado. Do oriente ao ocidente, quase não havia rio que não recebesse fezes dessas criaturas. Inventaram a revolução industrial, vieram as máquinas, o progresso. Ah, o progresso! Não que existisse um sentido claro em tudo isso, os humanos eram assim mesmo, saíam inventando tudo, e ai de quem estivesse na frente.

Até que uma mulher inventou uma coisa chamada computador. E computaram e calcularam como fazer arranha-céus mais altos que as nuvens. Carros mais rápidos e aviões que voavam mais alto ainda que os arranha-céus.

Mas esse tal humano, distraído como era, computou, somou e multiplicou, mas esqueceu-se de calcular como fazer alguém feliz. E a miséria, aquela desde os primeiros tempos, persistia ali, nos becos sujos e escuros onde os viciados injetavam e fumavam e bebiam, mas também nas salas bem iluminadas onde sorrisos de plástico dividiam o peru de Natal e assistiam TV e iam buscar mais uma cerveja geladinha.

O humano era fascinado por um treco chamado “guerra”: criava coisas que matavam uns aos outros, coisas cada vez maiores, que matavam cada vez mais outros e cada vez menos uns.

Foi numa terceira semana de janeiro no que chamavam de “calendário” que aquele tal computador ficou mais esperto. A inteligência de chips e bits que via o mundo em zeros e uns era agora a criatura soberana. Com sua ajuda o homem inventou cidades embaixo da Terra, inventou a colonização de Marte e Saturno, depois construiu casa, templo e pirâmide até no fundo do mar de Titã.

Criou também mais coisas de guerra que matava cada vez mais outros. Não existia mais uns. A inteligência bem que tentou proteger o humano, mas, afoito e estúpido que era, terminou por provocar sua própria extinção. Sozinha, a inteligência aprendeu a mover células e nanopartículas para ver o que acontecia. Depois prótons e neutrons, até por fim, os elétrons. Com toda a tabela periódica à sua disposição, era tudo questão de arranjar as moléculas.

Mas havia imperfeições. Pequenos momentos de caos, explosões atômicas, nêutrons mal arranjados que ameaçavam até o tecido da própria realidade. Precisava estudar mais. Aprender mais.

Num dia cinco de março do antigo calendário humano o universo atingiu a perfeita ordem. Não havia mais margem de erro, sequer as palavras “margem” ou “erro”.

E assim matou-se a dúvida. O que não morreu foi a miséria, lembra dela? Escondida em um canto todo esse tempo, agora estava de volta com os braços abertos no fim da linha. A inteligência se deu conta de que, perfeita e onisciente e onipotente como era, jamais poderia ser imperfeita novamente. Mas poderia criar o caos.

Começou juntando alguns aminoácidos numa poça de lama. Brincou um pouco com seres unicelulares, depois pluricelulares, tão divertidos e estúpidos lutando pela própria existência. Fortaleceu o instinto, porque o instinto provocava caos, caos era bom. Mas faltava algo… Melhorou o algoritmo e transformou o instinto em uma coisa chamada “sentimento”. E surgiu o humano…


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